“O refúgio não está só na questão da nacionalidade”, diz atriz de Era o Hotel Cambridge

No dia 9 de março aconteceu em São Paulo uma cabine e coletiva de imprensa do filme Era o Hotel Cambridge.

O filme, premiado no San Sebastian Festival de 2015 e no Festival do Rio no ano passado, mostra o cotidiano de pessoas que fazem parte de um movimento social por moradia e ocupam um prédio abandonado no centro de São Paulo.

Hotel de luxo nos anos 50, o prédio do Cambridge ficou abandonado durante anos, até ser ocupado pelos militantes do FLM – Frente de Luta por Moradia, em 2012.

Na coletiva de imprensa, a diretora Eliane Caffé explicou o processo de criação do filme, dizendo que tudo partiu da ideia de abordar uma questão que assola todo o planeta atualmente: A questão dos imigrantes refugiados. No processo de pesquisa, porém, a equipe se deparou com o fato de que muitos dos refugiados da cidade de São Paulo vivem em ocupações lideradas por movimentos sociais de moradia e com isso se abriu um leque que fez o filme se tornar algo totalmente diferente da ideia inicial.

Para a diretora, não era interessante explorar uma tragédia ou luta individual de um personagem em situação de refúgio. O que se vê no filme é o cotidiano de pessoas comuns que vivem dentro de ocupações e participam ativamente dentro de um movimento por moradia.

Carmen e Magaly , mulheres que vivem a realidade das ocupações no centro de São Paulo.

A produção fez um intenso trabalho de imersão dentro da realidade das ocupações. Segundo o produtor executivo André Montenegro, a equipe ficou quase dois anos no Hotel Cambridge vivenciando a rotina dos moradores, porém foram apenas quatro semanas de filmagens. Já a montagem durou aproximadamente sete meses.

Nesse tempo vários trabalhos sociais foram desempenhados juntamente aos integrantes da ocupação, como oficinas de dramatização, oficinas infantis e oficinas de arquitetura e urbanismo realizadas pela diretora de arte do filme, Carla Caffé, em parceria com os alunos da Escola da Cidade.

Misturando registros documentais com cenas dramatizadas, um dos fios condutores do longa é o choque cultural entre os diversos moradores da ocupação, que são provenientes de diversas partes do Brasil e do mundo. Pessoas reais como a líder da ocupação Carmen Silva e o refugiado palestino Isam Ahmad Issa interpretaram a si mesmos na obra e contracenaram com atores profissionais veteranos como José Dumont e Suely Franco.

Carmen Silva se considera uma refugiada interna. Ela veio de Salvador para São Paulo há 23 anos e acabou se tornando uma das lideranças do FLM – Frente de Luta por Moradia.

O refúgio não está só na questão da nacionalidade, existem também os refugiados de políticas públicas. Nós vivemos um choque de cultura entre nós mesmo. Eu costumo dizer que vivemos em vários ‘Brasis’. E ao chegar aqui com aquele sonho nordestino, de que eu iria arrumar emprego, ia ter moradia, me deparei com uma cidade de pedra em todos os sentidos. Não só o concreto da viga dos prédios, mas o concreto da frieza da recepção” – Carmen Silva

A líder do FLM Carmen Silva contracena com o ator José Dumont e Guylain Muskendi Lobobo, imigrante do Congo que vive na ocupação.

Segundo a atriz e líder social, um dos papeis fundamentais dos movimentos por moradia é a re-socialização e para isso há critérios e regras a serem seguidas por todos os integrantes. No longa, é possível ver que é cobrada uma participação ativa de todos os moradores nas questões pertinentes ao movimento e em relação às necessidades internas do prédio ocupado, como eletricidade, água, limpeza. Cada membro possui uma função dentro do grupo.

Não é fácil você lidar com um cidadão que não quer saber de regras, que não quer saber de deveres. Ele está tão arrebentado que não sabe distinguir o que é certo do que é errado. Você devolver ao Estado um cidadão pleno tem um peso, sim! Nós temos critérios e às vezes nós temos pessoas que burlam esses critérios.”, diz a atriz.

Para o palestino Isam Ahmad Issa, todos os refugiados são pessoas de muita coragem:

“Hoje colocar essa questão da briga por terra, da busca de um metro quadrado para um brasileiro no Brasil, isso é coisa muito filosófica. Africano, brasileiro, palestino e pessoas de outros lugares são seres humanos e tem todo direito de ter onde dormir e onde acordar. Ela (Eliane Caffé) tocou em assuntos muito essenciais. E eu sou um ponto muito pequenino nessa linha muito grande.”

Questionada sobre uma possível resistência ao filme por parte de pessoas não simpáticas à causa dos movimentos sociais de moradia, a diretora Eliane Caffé disse que ao fazer divulgação pelo Facebook recebeu muitos comentários de ódio:

Muita gente só de ver o trailer já picha demais (…). Algumas vezes a gente até convidou o pessoal para ir ao Cambridge como uma forma de amenizar esse impacto, essa resistência que tem do outro lado. E é muita grande essa resistência. Tem coisas que eu ainda não entendo muito, como por exemplo, o componente do ódio. De onde que vem esse ódio tão enorme das pessoas que defendem, por exemplo, a propriedade privada? É a formatação de um imaginário feito há séculos! Para ruir isso, o nível de alienação é tão gigantesco. Até dentro do movimento, você vê também até das pessoas que estão nessa situação.”, conta a diretora.

Eliane Caffé ainda criticou o sistema político predominante mundialmente, usando como exemplo as guerras da Palestina e do Congo, que sofre com a questão dos ‘minérios de sangue’:

“As culturas são completamente diferentes: África, Palestina, Brasil, Colômbia… São culturas tão diferentes que tem o denominador comum que atravessa todos e a gente sabe que é o sistema que a gente vive, o sistema neoliberal que domina o globo e ele traça uma reta que é um denominador comum”

No dia 13 (segunda-feira) às 18h30, haverá o lançamento do livro Era o Hotel Cambridge: Arquiterura, Cinema e Educação no CineSesc, localizado na Rua Augusta, em São Paulo. Escrito por Carla Caffé, o livro aborda a experiência pedagógica e artística da autora junto aos alunos da Escola da Cidade no processo de criação da direção de arte e cenografia do filme.

Após o lançamento do livro com sessão de autógrafos, haverá uma pré-estreia gratuita do filme às 21h. Os ingressos poderão ser retirados a partir das 18h30 na bilheteria do CineSesc.

A estreia de Era o Hotel Cambridge acontece no dia 16 de março em São Paulo, Brasília e Recife.

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