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Coluna | Onde o Oriente encontra o Ocidente – a trilha sonora de Amor à Flor da Pele

O mundo ocidental e oriental são, à primeira vista, bem demarcados no senso-comum. Nós, do lado de cá, temos uma certa concepção sobre política, religião, arte e cultura que se opõe até certo ponto aos nossos vizinhos orientais, dotados, por sua vez, de códigos e hábitos que lhes são particulares. No entanto, em meio a modernidade que tudo devora e tudo ressignifica, essas fronteiras ideológicas e culturais tendem, pouco a pouco, a se misturar. A controvérsia a respeito da divisão Ocidente-Oriente, que não era pouca, se intensifica ainda mais quando olhamos para a produção artística desses “dois mundos”.

Nesta coluna inaugural, gostaria de convidá-los a conhecer “Amor à Flor da Pele”, de Wong Kar-Wai, e sua trilha sonora que desconhece limites culturais.

O filme se passa na década de 1960, na cidade de Hong-Kong.  A secretária Su Li-zhen (Maggie Cheung), e o jornalista Chow Mo-wan (Tony Leung), alugam dois quartos da casa de uma mulher, onde iriam morar com seus respectivos marido e esposa, que viajavam a trabalho. Aos poucos, descobrimos que o companheiro de Su e a mulher de Chow estão tendo um affair. Ao perceberem o caso, os dois traídos desenvolvem uma amizade que, ao longo do filme, aparenta diversas vezes se desenrolar em algo a mais. O amor entre os dois, no entanto, permanece no campo platônico.

O título original, Fa Yeung Nin Wa, algo como “A era das flores” ou “Os anos floridos”, remete a uma metáfora chinesa sobre a juventude. A primavera de Su e Chow, todavia, é marcada por uma intensa reflexão sobre o sentido da vida que eles levam – e acabam dividindo. De forma constante, a solidão é representada em momentos íntimos e simplórios da vida cotidiana, como, por exemplo, fazer uma refeição sozinho. O tempo, evocado pela ideia do título, se mostra irremediável e preciso, mesmo quando as personagens não se dão conta dele. Além do existencialismo implícito no roteiro, Wong Kar-Wai, diretor chinês, é considerado um especialista quando se fala em estética: seus filmes atraem pelas cores, luz e fotografia. Em “Amor à Flor da Pele”, ancorado nesses aspectos, somos capturados por outro elemento: a trilha sonora.

Assinada por Michael Galasso, violinista e diretor musical, a escolha de repertório é o que mais se destaca na trilha e confere ritmo a obra: aliada a um frequente uso da câmera lenta, a peça instrumental Yumeji’s Theme – criada pelo também compositor de trilhas Shigeru Umebayashi para outro filme, intitulado homonimamente Yumeji (1991), de Seijun Sukuzi, marca diversos momentos do longa, e cresce conforme a intimidade dos protagonistas: As camadas dos personagens, assim como as de “Yumeji’s Theme”, vão sendo reveladas pouco a pouco. Com uma base de cordas tocando em pizzicato, – “beliscado”, em italiano – um violino sola durante os quase três minutos de música.

Wong cita, em entrevista, os restaurantes que sua mãe o levava, nos quais a música ambiente era a de língua latina. Fala diretamente de Nat King Cole, e de como a imagem que tinha do Ocidente era moldada por suas canções. De modo parecido, os boleros em espanhol cantados por Cole tomam conta do filme e caem como uma luva no drama daqueles quase amantes. Ouvimos Aquellos Ojos Verdes, do álbum A Mis Amigos, de 1958, Te Quiero Dijiste e Quizas, Quizas, Quizas (Perhaps, Perhaps, Perhaps), duas masterpieces do LP “Cole Español”, de 1959. A estranheza inicial ao ouvir músicas latino-americanas em um filme oriental se transforma, aos poucos, em uma quase naturalidade. De alguma forma, aquelas músicas são incorporadas à trama com poucos percalços. Ao combinar narrativas e referências chinesas com uma trilha sonora formada por canções latino-americanas e temas de outros filmes orientais, Wong Kar-Wai e seu Amor à flor da pele distorcem certas concepções acerca do que seria ser oriental ou ocidental. O Oriente é refratado pelo Ocidente, e vice-versa.

Vencedor de três prêmios no Festival de Cannes – entre eles a Palma de Ouro – e de diversas outras premiações ao longo do mundo, Fa Yeung Nin Wa, ou simplesmente Amor à Flor da Pele, é um filme que mais do que visto, vale ser sentido.

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Luiz Ribeiro

Instrumentista e compositor pernambucano. Graduando em Comunicação Social. Gosta de escrever sobre livros, filmes e música, não necessariamente nessa ordem.

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