Quem vem pra beira do mar, nunca mais quer voltar
– Dorival Caymmi
Em tempos de revisionismo histórico e declarações autoritárias e perigosas, o exercício artístico, naturalmente diverso, assume papéis ainda mais múltiplos: é réu e ao mesmo tempo acusador, pode ser panfletário e dono de uma retórica pobre, mas também revela-se complexo e contundente, refletindo assim um lugar, um tempo, e as inúmeras formas de enxergá-lo e, por que não, criá-lo.
Pérola da música popular brasileira, a cantora e compositora Adriana Calcanhotto pode ser considerada um dos agentes dessa multiplicidade: revelação da gravadora CBS, lançou seu primeiro álbum, “Enguiço”, ainda nos anos 1990. Desde o primeiro momento, sua carreira flertou tanto com o mainstream – em hits como “Naquela Estação” (Caetano Veloso/João Donato/Ronaldo Bastos) e “Esquadros” (Calcanhotto) – quanto com o experimentalismo e temas da arte de vanguarda – como “Parangolé Pamplona”, sobre a obra do artista plástico Hélio Oiticica, e “Vamos Comer Caetano”, duas composições da artista presentes no álbum “Maritmo” (1998). Na corda bamba entre arte pela arte e música enquanto mercadoria, lançou recentemente o clipe “Ogunté”, primeiro single do álbum “Margem” (2019), que completa a trilogia sobre o mar iniciada com os álbuns “Maritmo”, supracitado, e “Maré”, de 2008.
Expressão em iorubá, idioma de origem africana, que significa “aquela que carrega a guerra”, ou “aquela que carrega Ogum”, Ogunté remete a Iemanjá, uma orixá – vocábulo utilizado pelas religiões afro-brasileiras para designar seus deuses – dos oceanos, símbolo da força e, ao mesmo tempo, da cordialidade que a maternidade possui.
Assim, se Calcanhotto, nos primeiros álbuns da trilogia, assume um caráter admirado e brando, evidenciado na escolha de interpretar, entre outras canções, “Quem vem pra beira do mar”, de Dorival Caymmi, célebre compositor baiano, em Ogunté a artista toma outro impulso lírico: com um figurino feito a partir materiais recicláveis, assinado pelo estilista Antônio Gomes, ela encarna a figura mítica de Iemanjá e discorre sobre a poluição dos oceanos, a mácula histórica deixada pelo tráfico de escravos, e a questão contemporânea dos refugiados de países como a Síria. Seu filá, adereço usado pelos orixás femininos como Oxum e a própria Iemanjá, é produzido a partir de canudos de plástico. Em uma representação do próprio oceano, ela veste um enorme vestido feito de sacos de lixo. Nele, a artista flutua em movimentos descontínuos.
Na música, ouvimos programações e beats eletrônicos aliados a instrumentos como a flauta transversal executada pelo músico Bem Gil, e aos três tipos de atabaques, rum, lé e runpi, tradicionais instrumentos de percussão, comuns em terreiros de candomblé e umbanda. Um piano eletrônico e um contrabaixo elétrico executam os mesmos riffs, ou seja, fraseados musicais, ao longo de toda a canção. A letra é recitada numa prosódia que lembra gêneros como o rap e o spoken word.
“Tupi or not tupi”
Ao misturar aquilo que é ancestral ao que há de mais moderno, a compositora vai ao encontro de modernistas como Mário de Andrade – escritor, ensaísta e um dos fundadores do Modernismo brasileiro, cuja obra como crítico compreendia a verdadeira música brasileira como aquela que assume para si, livre de exotismos, as manifestações culturais populares – e tropicalistas como Gilberto Gil, cuja perspectiva, ainda que sob características peculiares, bebe da fonte modernista: segundo Gil, a possibilidade de que o experimentalismo em canções como “Strawberry Fields Forever”, da banda The Beatles, e a musicalidade da Banda de Pífanos de Caruaru tivessem semelhanças e pudessem ser, de alguma forma, engendradas, foi fundamental para a proposta artística que culminaria no disco-chave “Tropicália ou Panis et Circenses”.
Adriana Calcanhotto, dessa forma, apresenta diversas camadas de intervenções estéticas. A canção, lançada no dia 02 de fevereiro, efeméride dedicada à Dandalunda, um dos nomes da orixá dos mares, compõe-se de bases tecnológicas e orgânicas, e perde força se separada da linguagem audiovisual do videoclipe, que adiciona novos elementos à narrativa: o imenso manto negro feito de lixo esconde e protege personagens que representam escravos mortos durante o trajeto do tráfico negreiro, vigente até o século XIX, e refugiados políticos. Na cena final, um homem trajado como colonizador e uma mulher olham para a figura imponente de Iemanjá, que tem a sua frente o seu cavalo, isto é, a pessoa capaz de receber e corporificar divindades.
Em Ogunté, Calcanhotto atinge um ponto alto como a cantora e compositora que foge de estereótipos e reducionismos sobre o que a música e a arte devem ou não fazer. Numa das melhores músicas do ano, dotada de um olhar perspicaz, ela incorpora a Iemanjá da pós-modernidade que, mesmo vestida de lixo, afirma e pergunta, altiva e misteriosa: “O plástico do mundo no peixe da ceia. O que será que cantam as tuas sereias?”.
Agradecimentos ao psicanalista, pesquisador e candomblecista Kleberson Ananias.
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