Corpo Elétrico é muito mais uma celebração do que uma representação
Dia 17 estreou nos cinemas Corpo Elétrico, um filme de Marcelo Caetano, que conta a história de Elias (Kelner Macedo), um assistente de estilista que vive sua sexualidade intensamente na cidade de São Paulo. O Cin3filia fez uma entrevista com o diretor e com o protagonista do filme. Nossas perguntas estão em negrito.
O Elias é um personagem extremamente carismático no filme. Como foi essa construção do personagem, o que você teve que aprender de mais difícil e o que o diretor capturou que é mais seu?
Kelner – Eu acho que a coisa mais distante de mim era o trabalho, ele é assistente de estilista, trabalha em uma confecção de roupas, então era uma coisa que era distante do meu mundo. E o nosso trabalho era encontrar não lugar de criação de personagem mas de aproximação. Então a gente teve que entender qual é a diferença entre Kelner e Elias e acabar com elas, era se colocar num lugar de presença muito mais de representação. Eu costumo falar que o Elias é como o mar, ele vem, enche, seca. As pessoas entram no mar, modificam o percurso das águas e ele deságua em outro lugar e a coisa recomeça.
Marcelo – O modo que eu trabalho é de convidar os atores que contribuíram das formas que eles podem. Existe um borramento entre personagem e ator. O que acontece no filme é que os atores estão trazendo quem eles são. Eles não estão ali para representar um personagem, muito menos para atender uma expectativa do público. Eles estão ali para mostrar de certa forma o que eles querem mostrar, a contribuição que eles querem dar, e eu dou essa liberdade na forma que eu trabalho.
No filme além do Elias temos vários outros personagens LGBT’s, e o personagem transita entre várias personalidades e foge muito de um estereótipo, qual foi o cuidado que vocês tiveram ao fazer um personagem tão complexo?
Kelner – O Elias é um meio condutor dessa história, então eu precisava passear sobre os núcleos. Nesse filme eu precisava me relacionar com todos esses atores e atrizes, então o trabalho maior era tirar as camadas de proteção que a gente tinha. A gente vai vivendo dentro desse mundo onde coisas acontecem, repressões, a sociedade está querendo que a gente entre dentro de uma caixinha e o nosso trabalho era sair dessa caixa, transbordar. Porque a gente não cabe mais ali, era mais sobre a subjetividade um personagem e não sobre representatividade de uma classe ou um grupo.
Como foi trabalhar com Marcia Pantera e a Linn da Quebrada?
Kelner – Foi uma mega experiência. Primeiro que o elenco é muito diverso. Pra Linn era um momento muito bonito, porque era o início da carreira de cantora, ela ainda estava começando a escrever essas músicas, então era um processo que caminhava junto. Ela chegava excitadíssima na sala de ensaio mostrando as músicas, dizendo “Gente tô nervosa” bem canceriana, já chegava sofrendo. A gente dizia isso é maravilhoso, isso é f*** e a coisa começou a ganhar forma eu fico muito feliz com isso.
A Márcia pantera foi uma grande surpresa porque é uma pessoa muito maravilhosa, durante esse processo do filme eu fui me apaixonando por ela. E ela não é atriz então ela tem outro lugar de acesso e a gente tem que aprender um pouco como entrar nesse jogo dela. Foi muito especial.
Marcelo – A Márcia Pantera, já tinha feito um outro curta junto comigo. A gente é amigo, e a Marcia deu uma abertura total para entrar na vida dela. Eu filmo na casa dela, na moto dela. A gente queria nesse filme formar uma família de drags na qual o personagem Wellington vivesse, e obviamente escolhemos a Márcia que era mais próxima de mim. Para compor essa família a gente colocou quem nos gostávamos da performance. Na época a Linn Santos não era a Linn da Quebrada, essa personagem surge depois que a gente filmou. Ela estava começando a escrever, e a gente criou uma cena a partir de uma música que ela tinha acabado escrever que era “Talento”. Ali era um embriãozinho da terrorista de gênero e ela foi muito generosa de ter trazido pro filme. Eu acho que é legal também falar dessa diferença a Linn que representa uma geração que tem um outro tipo de formação, a Márcia é uma cria da noite, das boates. A Linn é uma cria das escolas de teatro com diálogo com os grupos de performance com a teoria queer. Então esse ruído entre elas é muito interessante no filme. A gente brincava muito com as diferenças entre elas.
O filme é feito sobre um garoto periférico e sua vida. Como vocês decidiram o tom do filme pra que fosse fiel a realidade?
Kelner – A gente queria levantar uma subjetividade e o Marcelo tem interesse por esses corpos que são diferentes, que são periféricos. Ele acha que é muito mais interessante. Porque a gente está acostumando a assistir um filme gay onde tem tragédia, onde é homofobia se materializa de uma forma muito violenta. Ele opta por ir em outro lugar porque a homofobia está em pequenas coisas, está no espaço que a gente toma, e ele vem propor para gente se colocar como pessoa no mundo e não entrar mais dentro da caixinha, pra permanecer e sobreviver fora dela.
O que você estão achando da repercussão do filme?
Kelner – Eu estou achando muito bonito tudo que está acontecendo. Enquanto estava rolando fora do Brasil, era uma experiência diferente e temos encontrado um outro lugar de reação e relação com o público brasileiro. Eu acho que está bonito, estamos em processo de descoberta. É muito mais uma celebração desses corpos, do que uma representação dessa classe e de grupos. Espero que as pessoas se abram para ver o filme que é feito com muito tesão com e muito carinho. E que é só mais uma possibilidade que surge dentro dessa sociedade controladora dos corpos.
Como foi a escolha de abordar um olhar sobre a vida das drags, que está tão atual e em evidencia agora?
Marcelo – Na minha vida as drags sempre estiveram em alta. Meu primeiro namorado era uma drag queen, isso em 1999. Então eu estou próximo do universo das drags há bastante tempo. Está em alta mas sempre existiu, em alta no sentido mercadológico, tem gente ganhando dinheiro com isso. Antes as drag ganhavam 40 reais para fazer um show em uma precariedade absoluta. Hoje felizmente elas conseguiram construir espaço onde elas são valorizadas midiaticamente.
Quais filmes ou referências vocês usaram para compor o filme?
Marcelo – Eu não uso referências nesse sentido, eu mostro geralmente para equipe os atores mais coisas que eu não quero do que coisas que eu quero. O que usava muito e o que era muito interessante para gente, eram filmes de internet, de pessoas que se filmavam. Entender como é que esse corpo popular antes muito caricaturado e filmado pelas elites se mostravam nos vídeos, nos memes, nos virais. Então surgiu esse desejo de ficar pesquisando esse tipo de linguagem, não que a gente fosse reproduzi-la na vitalidade avassaladora e demoníaca que esses vídeos têm. Mas as nossas influências vinham tanto dessas coisas, consideradas “baixa cultura”, quanto Mil e uma Noites, por exemplo. Usamos também a ideia da personagem Sherazade, aquela que conta histórias para manter o interlocutor ao lado da cama, o Elias tenta enganar a solidão e o fim da juventude nos relatos que ele traz para os homens que ele vai encontrando durante as noites.
Apesar de tratar de temas muito complexos e que ainda hoje sofrem muito preconceito, o filme trata de alguns temas de forma a não mostrar tanto a violência, e celebrar a diversidade, que caminho é esse e porque vocês fizeram essas escolhas?
Marcelo – Eu já fiz casting para vários filmes e é muito chato você chamar um ator negro para segurar uma arma, para lavar uma louça, para levar pito de patroa. É muito chato a gente chamar uma “bixa” para morrer, essa expectativa que a tragédia sucumba esses corpos me machuca e eu preciso resistir enquanto autor. A homofobia está a todo momento rondando este filme, assim como a transfobia, o racismo, só que eles não destróem esses corpos.