Um Grito Chamado “Recinfernália”

“Por que falar de Jomard Muniz de Britto?”, nos perguntaria o próprio pensador e multiartista pernambucano, num exercício de não glorificação, típico do seu ethos. No entanto, vê-se cada vez mais necessário falar sobre ele: recifense, JMB é uma das vozes mais importantes e transgressoras da cultura brasileira, tendo percorrido os mais diversos caminhos ao longo de sua prolífica vida.

De educador a poeta, de professor universitário a “superoitista”, sua carreira transcende fronteiras. Numa dialética de reinvenção e crítica constantes, questionou, dentre outras coisas, a hegemonia intelectual de nomes do pensamento pernambucano e nacional como Ariano Suassuna e Gilberto Freyre, e foi um dos autores do Manifesto Tropicalista pernambucano. Neste ano, é homenageado pelo Festival de Inverno de Garanhuns (FIG), um dos mais importantes festivais de artes da América Latina, produzido pela Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco (FUNDARPE). 

Para falar da importância da música no seu trabalho, bem como de sua incursão no audiovisual, precisamos nos remontar aos idos da década de 1970, em que a ditadura militar era vigente no Brasil. Proibido de ensinar nas Universidades Federais de Pernambuco e da Paraíba, começa a se aproximar de forma mais direta da linguagem cinematográfica – já era crítico de cinema desde os anos 1960 – através do equipamento Cânon 310 XL 8mm, popularmente chamado de Super 8. Em 1974, amparado pela máxima de Gláuber Rocha “uma câmera na mão e uma ideia na cabeça” lança o seu primeiro filme: “Babalorixá Mário Miranda/Maria Aparecida no Carnaval”, um perfil de uma das personagens mais irreverentes de sua época.  

Em 1975, lança “Recinfernália”, uma brincadeira com as palavras recife, inferno e parafernália. No momento em que se aventura pelo Super 8, descobre na música uma importante aliada na narrativa fílmica: em “Babalorixá Mario Miranda”, usa as canções Maria Escandalosa (Klécius Caldas/Armando Cavalcanti) e Aquarela do Brasil (Ary Barroso) para construir o retrato do pai de santo e transformista. Em “Recinfernália”, o uso da linguagem musical se intensifica: ela toma o protagonismo e se torna, também, a personagem de uma Recife saudosa e, ao mesmo tempo, caótica.

A partir da trilha sonora, podemos afirmar que o que vemos ao longo dos quase 15 minutos de curta é uma cidade atravessada por múltiplas temporalidades. “Recife, Cidade Lendária”, canção de 1950 do Mestre Capiba, um dos grandes baluartes da música pernambucana, e “Borboleta Pequenina”, cantiga popular interpretada por Alceu Valença, representam, cada uma a seu modo, a nostalgia de tempos passados e gloriosos da capital pernambucana, em que “os boêmios cantavam suas lindas canções” e havia “velhos sobrados, compridos, escuros”. 

Ao mesmo tempo, contrastando com todo esse saudosismo, está “Pra frente Brasil”, composição de Miguel Gustavo, uma ode à seleção brasileira, na época da primeira transmissão de uma copa do mundo de futebol. Através das lentes de Jomard, vemos olhos atentos na televisão e nos jogadores. Pessoas jogam sinuca enquanto a canção prossegue: “Somos milhões em ação, pra frente Brasil, no meu coração”. Em determinado momento, uma placa de papelão comunica: “povo desenvolvido é povo limpo”.

Mais à frente, corte para o do centro da cidade. Pessoas andando para todos os lados. Barulhos de carros. Letreiros em inglês e garrafas de Coca-Cola. Esse caos urbano é deflagrado, em determinado momento, por “Papagaio do Futuro”, música de Jackson do Pandeiro, Geraldo Azevedo e Alceu Valença, e interpretada por este último. “Eu fumo e tusso fumaça de gasolina, olha que eu fumo e tusso”, canta Alceu, em meio a pífanos e instrumentos de percussão.

Estas canções vêm e vão, seguindo diferentes imagens: Gilberto Freyre, já idoso, saindo de um carro em direção a um cinema. Imagens aéreas do Recife Antigo. Uma senhora, acompanhada de uma criança, olha com uma sanfona de oito baixos a tiracolo o vai e vem dos transeuntes, anônimos e misteriosos. Num corte magistral, vemos, numa praça, uma estátua imponente com o braço direito erguido dar lugar a vários pastores evangélicos que pregam nessa mesma praça, também com os braços erguidos. Encaminhando-se para o final, palhaços, jovens e outros tipos humanos sorriem, dançam e interagem com a câmera. Tudo termina, no entanto, com Gilberto Freyre saindo do cinema e retornando ao seu carro.  

“Recinfernália” mostra o espaço onde, de forma desorganizada e viva, tudo cresce: caos, paz, nostalgia e modernidade. Cinema e música contribuem mutuamente, retratando de forma explícita um tempo e lugar. Jomard Muniz de Britto é, antes de tudo, um observador. Sua perspectiva afiada procura, no curta, auscultar uma sociedade recifense que, em meio ao totalitarismo, a saudade e a contemporaneidade, pulsa e torna-se cada vez mais complexa. 

 

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Luiz Ribeiro5 Posts

Instrumentista e compositor pernambucano. Graduando em Comunicação Social. Gosta de escrever sobre livros, filmes e música, não necessariamente nessa ordem.

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