Coluna | A complexa virtude do hibridismo: o álbum visual em Luiza Lian e Baco Exu do Blues

Um jovem negro corre pela cidade em câmera lenta. Seu semblante denuncia desespero e pressa: assim se dá o mote do curta-metragem de pouco mais de oito minutos produzido a partir do mais recente álbum intitulado Bluesman do rapper soteropolitano Baco Exú do Blues.

Realizado pela empresa AKQA e pelo Festival Coala, além de roteirizado pelo próprio Exú do Blues, o filme oficial de Bluesman reconhecido como álbum do ano de 2018 pela revista Rolling Stone tem como protagonistas o novato Kelson Succi e o veterano Hilton Cobra, ambos atores e diretores que, em seus próprios trabalhos, discutem a figura do negro no Brasil. O curta, na mesma tendência, mistura trechos das canções do rapper com cenas em que o preconceito é desvelado e referências da cultura negra são exaltadas. Nos primeiros minutos, a personagem de Cobra, atrás de um balcão cheio de jóias, sobre uma luz indireta que torna seu semblante interessantemente altivo, discorre sobre as propriedades etimológicas “do latim argentum”, explica ele e sociais da prata, ao tecer uma alusão entre o metal como signo da pele negra e o ouro como o da pele branca.

Em 2017, por sua vez, Luiza Lian, cantora e compositora paulista, lança o álbum Oya Tempo, produzido a partir de batidas eletrônicas do DJ Charles Tixier e de letras compostas por Lian, com temáticas contemporâneas aliadas a espiritualidade africana e afro-brasileira. O próprio nome do trabalho se refere a Logunan, entidade espiritual do tempo. Paralelamente ao lançamento, foi disponibilizado no canal da artista no YouTube um média-metragem com as canções do trabalho. Produzido pela Diaba Filmes e protagonizado por Nina Oliveira, MC Diggão e pela própria Lian, o filme de Oya Tempo indicado ao prêmio Bravo! de Cultura de 2018 intensifica a atmosfera densa e etérea do álbum. 

Chegando até aqui, cabe perguntar: o que liga o trabalho de Lian ao de Baco, além de pertencerem a “novíssima safra da música popular brasileira”, como convencionou-se chamar? Para além do videoclipe, comum a partir da popularização da MTV, canal de televisão que disseminou a estética pelo Brasil e pelo mundo, o uso de recursos audiovisuais aliados a musicais, de forma mais longa e ambiciosa, é incomum na produção musical do país. No nosso século, o hábito de ver música, para além de uma mera escuta, é impulsionado com ainda mais força pela Internet, e conecta ao trabalho de Lian e de Baco o conceito de álbum visual: se em uma trilha sonora a música funciona como aparato para a narrativa cinematográfica, no álbum visual a linguagem do cinema funciona como aparato para a música. Toda a concepção acerca do conteúdo e da forma do filme (curta, média ou longa-metragem) gira em torno do trabalho musical da banda ou do artista. 

Oya Tempo

Na poética de Lian, são abordados os possíveis conflitos entre duas pessoas, bem como aqueles entre o indivíduo, a espiritualidade e os ditames da sociedade contemporânea. Com a intenção de criar uma atmosfera psicodélica, a presença constante de sintetizadores conversa com gêneros que vão do trip hop ao funk, passando pelo drum’n bass e a macumba. A versatilidade e ecleticidade da obra também se estende à produção técnica do média-metragem, com um tipo de captação que oscila entre o profissional e o “artesanal”, em que takes e planos bem dirigidos dividem o espaço com filmagens a partir do celular.

Em entrevista, a artista alude a crença de algumas tribos indígenas de que, ao tirar uma foto de alguém, estaria-se roubando a alma do fotografado. Em um mundo com o uso de redes sociais cada vez mais alastrado e problemas provocados pela superexposição, a metáfora de ter a alma roubada pela imagem encontra sentido: ao som de “Flash (Úmido IV)”, a personagem interpretada por Nina Oliveira filma a si mesma.

 

Rouba minha alma num flash

Não é um flash

[…]

Rouba minha alma no espelho

Não é o espelho

Gesto congelado

Fantasma de si mesmo

Montagem

[Luiza Lian – Flash (Úmido IV)]

 

É interessante notar a contradição – talvez intencional- em problematizar o uso excessivo da imagem utilizando-se de uma linguagem artística puramente imagética como o audiovisual. Essa busca pela essência ou status orgânico da humanidade uma espécie de procura pelo estado natural do homem, ou, em termos rosseaunianos, pelo bom selvagem encontra novas texturas no arranjo puramente (e ironicamente) eletrônico das canções. Adicionando-se esses timbres à descrição da natureza e seus/suas orixás, entidades religiosas incorporadas ao repertório artístico brasileiro, o trabalho soa particularmente pop.

No média-metragem de Oya Tempo, a proposta é a não-linearidade. O roteiro fragmentado e experimental utiliza ora recursos de videoarte, ora de videoclipe, em uma montagem que possibilita ao espectador tecer inúmeras relações entre as personagens, os ambientes e as canções.

Bluesman

Procedimento semelhante se desenrola no trabalho de Exú do Blues. Apesar de, assim como o álbum visual de Luiza Lian, apresentar viagens oníricas e de cunho ancestral, o roteiro desenha uma continuidade e se preocupa com o entendimento e, poderíamos dizer, ao final, com a surpresa do espectador. É possível interpretar certas cenas como pensamentos aparentemente desconexos do garoto que corre freneticamente, mas também como pistas da mensagem ou das mensagens que Baco quer transmitir com seu Bluesman: a alusão à prata, mencionada no início do texto, e a resistência do negro em relação às mazelas da escravidão, bem como a emancipação deste através de sua própria cultura, são algumas delas. Em determinado momento, a personagem de Kelson Succi encontra, no meio de uma clareira, um monólito prata flutuando no horizonte. A associação com o monólito negro retratado em 2001: Uma Odisséia no Espaço (1968), do diretor norte-americano Stanley Kubrick, é imediata: a chave da emancipação cantada por Exú do Blues, assim como a da evolução humana na narrativa do filme de Kubrick, parece ser aquilo que flutua, um mistério que a humanidade contempla atônita, e que é capaz de transformá-la por completo.

A expansão desse nicho do mercado fonográfico e de vanguarda musical, ainda recente no contexto musical brasileiro, tem feito bons frutos, como nos casos aqui abordados. As interações entre cinema e música tendem a ser múltiplas e a provocar as mais diversas reflexões sobre a natureza artística de cada linguagem. Ao expandir o poder conceitual e artístico do trabalho musical, o audiovisual ganha novas dimensões, semelhantes àquelas proporcionadas pelas harmonias, dinâmicas e intensidades da trilha sonora nos filmes convencionais.

 

Sorri ao receber flores no meu enterro

Eu sou eterno

Da geração dos iluminados

Dos raivosos incompreendidos

Dos que nasceram pra liberdade

[Baco Exú do Blues – BB King]

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Luiz Ribeiro5 Posts

Instrumentista e compositor pernambucano. Graduando em Comunicação Social. Gosta de escrever sobre livros, filmes e música, não necessariamente nessa ordem.

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