Amor e Revolução em O Caminho dos Tormentos

Em Yegorov, campo aberto, oficiais Brancos e Vermelhos enfrentam-se sob a luz nebulosa de um dia assolado pela fumaça das bombas e dos tiros. Os Brancos são pegos de surpresa em suas trincheiras e segundos depois encontram-se frente à frente com seus inimigos. Enquanto atiram, espancam e matam uns aos outros, a trilha sonora emociona o espectador, momento musical quase único nesta série de trilha sutil:

“Anjos, arcanjos e querubins

O que é mais assustador na terra, Primaveras ou Invernos?

Os Brancos também são Vermelhos por dentro,

Os Vermelhos também são Brancos por fora.”

            O Caminho dos Tormentos é uma minissérie russa de 12 episódios, dirigida em 2017 pelo diretor Konstantin Khudyakov em homenagem aos 100 anos da Revolução Russa de 1917. Foi transmitida, primeiramente, pela emissora NTV da Rússia, para, então, ganhar maior visibilidade no catálogo da Netflix, sem deixar de fazer parte de seu acervo mais obscuro. A série é baseada na trilogia de mesmo título de Alexei Tolstói, parte da nobre família do maior escritor russo do século XIX, Liev Tolstói. Apesar de não ser tão conhecido ou amado como o impecável autor de Guerra e Paz, Alexei venceu três prêmios Estaline de literatura e foi personagem importante no início do século passado.

Em meados do ano de 1914, a jovem Darya Dmitrievna Bulavina (Dasha) sai da tranquila Samara para morar com a irmã Ekaterina Dmitrievna Smokovnikova (Katya) na grande e problemática São Petersburgo, quando reminiscências da revolução de 1905 voltavam com força tremenda junto a expectativa de uma Guerra Mundial. Em uma atmosfera novelesca, que não chega a incomodar, as adversidades individuais e amorosas das irmãs Bulavinas desenvolvem-se diante de um cenário caótico desde a I Guerra ao fim da Guerra Civil em 1922. A ingênua Dasha, caloura em Direito, apaixona-se pelo patético Bessonov, personagem inspirado no poeta russo Alexander Blok, por quem sua irmã casada, Katya, também é apaixonada. Katya, espécie de Ana Kariênina, sente-se extremamente infeliz no casamento e alivia-se de sua angústia através de seu relacionamento com a arte e com os artistas. Dentre as duas protagonistas, Katya é, talvez, a mais intrigante.

No meio de seus infortúnios, as irmãs encontram o simpático engenheiro Ivan Ilich Telegin, que de pronto apaixona-se por Dasha, e o Oficial Branco Vadim Roshchin, por quem Katya se afeiçoa. O Caminho dos Tormentos é uma série curiosa para se pensar a não coerência política da Rússia de 1917 e os trajetos antônimos de Telegin, que acaba por tornar-se um Oficial Vermelho sem partido e, Vadim que não desiste da luta Real, trazem tais complexidades à tona melhor que as outras problemáticas da história.  Os dois amigos veem-se em espaços diferentes e nós, espectadores, os assistimos de maneira mais complexa do que quando fazemos a partir de abordagens ocidentais, em maioria patéticas, sobre qualquer aspecto da História Russa: os “inimigos” não eram concretos, mas a fome e as crises eram certas.

Felizmente, as questões históricas não referem-se apenas aos personagens masculinos. Diversas vezes, Dasha e Katya acham-se diante de contrariedades com os quais precisam lidar sozinhas, tais quais um encontro com o Exército Verde e o planejamento do assassinato de um personagem não-fictício conhecido de todos. Todavia, os quatro protagonistas, apesar de terem mais tempo de tela, não são os únicos à cativarem nossa atenção. Entre os coadjuvantes mais envolventes estão o poeta Bessonov, que muito bem retrata o desencantamento da classe artística com o progresso da Revolução, sujeito principal de algumas das melhores cenas cinematográficas e narrativas da série, e um casal de ladrões desertores do front, dupla comum naqueles tempos incertos.

Ainda que não recomende assistir a série sem nenhum conhecimento prévio da Revolução Russa e da Guerra Civil, ela é, apenas por seu enredo fascinante, uma ótima escolha para os amantes de ficções históricas. Com uma trama de todo atraente, atuações expressivas e uma construção estética que não desagradaria olhos exigentes, O Caminho dos Tormentos é uma das pérolas escondidas no catálogo da Netflix.  Diante de produções demasiadamente imperialistas, para quem ocupa-se com prazer de História e literatura russa, essa minissérie pode ser um passatempo muitíssimo atraente sob uma perspectiva talvez mais interessante: nenhum sotaque inglês ou americano vai interferir no entretenimento de ninguém.

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